Dramoleta reitoral (cena única)

Por Tercio Redondo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Gabinete do reitor da Universitas Futuri, a instituição pública de ensino superior mais bem ranqueada dos trópicos. No fundo da sala, uma parede forrada de retratos de ex-reitores. No meio, de pé, o reitor e seu vice, junto a uma grande mesa de madeira maciça, com pernas em formato de colunas manuelinas.

REITOR. Para mim, vale a máxima: “em vez do peixe, a vara de pescar”. O Instituto de Humanidades vive noutro mundo, ou, se preferir, noutra, remotíssima, época. Um corpo docente temeroso de arregaçar as mangas, achando que os cofres públicos têm de subsidiar tudo nesta vida: o salário, os livros da biblioteca, a reforma das instalações prediais, a moradia estudantil etc. etc. Alguns querem até mesmo assistência médica e odontológica. Tudo, obviamente, provido pelas tetas da universidade.

VICE-REITOR. Pois é, Valfrido, gente ruim de conversar. É uma turma que se acha muito sabida porque conhece Aristóteles e enumera de cor e salteado as rotas marítimas de Vasco da Gama. Entretanto, fora a soberba …

REITOR. … e o fanático sindicalismo, não entende nada do que se passa lá fora, do que seja o mundo concreto – mais que concreto! – do mercado e suas leis.

VICE-REITOR. Exato, mas, por falar nesses rebeldes, o governador não gostou nada, nada do vazamento do parecer. Como você sabe, ele foi pago pela Federação Nacional dos Bancos de Investimento sob a promessa de absoluto sigilo. Trabalho criterioso, profissionalíssimo, com indicações claras e precisas sobre o rumo que devemos tomar. É tão pormenorizado que fornece inclusive instruções sobre como lidar com os descontentes.

REITOR. Adorei o trecho que trata do que eles chamam de “torniquete de torquemada”, a proposta do estrangulamento insidioso, do decréscimo lento e gradual de nossa dependência do financiamento público, essa jabuticaba que nos desconecta da indústria, do agronegócio, dos bancos e das startups.

VICE-REITOR. Uma ideia de gênio! O documento dá também todas as dicas de como aliciar os aliciáveis, mostrando clara e didaticamente o modo mais eficaz de convencê-los a competir entre si pelas verbas. A velha e boa dança das cadeiras irá despertá-los de suas quimeras.

REITOR. Gostei dessa parte, mas desconfio da extinção imediata dos concursos públicos para a contratação de pessoal. Isso não se faz de um dia para o outro, e a criação de um comitê de caça-talentos é mais complicada na universidade do que supõe a nossa vã assessoria.

VICE-REITOR. Tem razão, estamos, aliás, em ano eleitoral, e o governador foi taxativo: não quer saber de agitação política no nosso quintal. Além do maldito leak, tivemos aquele desagradável incidente na feira de helicópteros, bem no coração do campus. Não fosse a confusão havida, não estaríamos sendo chamados de vendilhões do templo, até porque não vendemos nada; o que fizemos foi tão somente ceder os nossos extensos e subutilizados gramados a quem pode fazer bom uso desse belo patrimônio.

REITOR. Que coincidência infeliz! A reportagem tinha de estar presente justo na hora em que apareceram os estudantes com seus cartazes e a polícia com seus cassetetes! Você conhece mistura mais explosiva do que estudante, polícia e imprensa juntos, juntinhos, repartindo o mesmo espaço? Uma estudante grávida com uma fratura exposta e o namorado com dez pontos na cabeça!

VICE-REITOR. E uma aeronave com a porta pichada. Foi deveras constrangedor. Soube depois que o comandante da tropa levou uma merecida descompostura de seu superior. Surrar esses infelizes, com as câmeras de TV ligadas! Meu Deus, esses oficiais não recebem media training?

REITOR. Pois é… mas pensemos no futuro; meu mandato expira em dois meses, e eu já dava como certa a minha indicação para o cargo – você sabe qual, não o chamo pelo nome, dá azar. Bate três vezes com o punho cerrado no tampo da mesa. Agora, diante do noticiário negativo, não me sinto tão seguro assim.

VICE-REITOR. Deixe de bobagem, você conta com genuínos admiradores no executivo estadual. Sua reputação como administrador austero e resiliente extrapola as fronteiras do universo acadêmico. Lembre-se dos próprios feitos! Logo no primeiro ano de sua gestão, a universidade se livrou de seis refeitórios estudantis, cinco escolas técnicas, dois hospitais, três laboratórios farmacêuticos e dois terços dos apartamentos destinados ao alunado dito carente. Você é o grande precursor do processo de eliminação daquilo que não corresponde às atividades-fim de uma moderna universidade. Na semana que vem, você inaugura a Faculdade de Empreendedorismo e Inovação Criativa, que vai deixar a obsoleta Escola de Administração chupando o dedo. Pense em seu legado, Valfrido, pense em seu extraordinário legado!

REITOR. Suas palavras me animam, meu caro, já não me recordava tão bem de tudo quanto fiz. Mesmo assim… respira fundo e mira o vice-reitor nos olhos: diga-me com toda franqueza, o que pode comprometer mais a minha indicação: o vazamento ou a pancadaria?

(O texto, aqui em sua formulação original, foi publicado inicialmente no blog “A Terra é Redonda”)

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