“Mais vale um ponto bem batido do que um dia bem trabalhado”.

Na visão irônica, porém realista, trazida por equipes de serviços e laboratórios do Instituto de Psicologia (IP) em entrevista ao Informativo Adusp, a frase acima é a que melhor expressa o entendimento da Coordenadoria de Administração Geral (Codage) da Reitoria da USP acerca das questões relacionadas ao Sistema de Relógio Eletrônico de Ponto (SREP), também denominado “controle biométrico de ponto”, adotado em substituição ao controle manual da frequência ao trabalho.

Na avaliação do Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho (CPAT), o relógio de ponto constitui uma agressão ao modo como se organizam e são desempenhadas as diferentes atividades laborais e acadêmicas desenvolvidas em praticamente todas as unidades da USP. Diversas funções que exigem horários especiais, seja em laboratórios (por exemplo, alimentação de cobaias), seja em campo (saídas para pesquisa, para atividades de formação de estudantes, para realização de diferentes projetos de extensão ou para atendimentos), seja em inúmeras situações específicas, sofrem a interferência de regras ditadas de cima para baixo, sem diálogo com o corpo de funcionários, e que desconhecem a riqueza, variedade e importância do trabalho desempenhado.

A imposição do SREP é ilustrativa do modus operandi da oligarquia que exerce o poder na USP. Ela se deu por intermédio da Portaria GR 6.720/2015, a qual, assinada em 18/12, modificou a Portaria 6.709/2015, editada em 28/10 (portanto, menos de dois meses antes), cujo artigo 3º definia: “A frequência diária dos servidores será apurada pelo registro de ponto, eletrônico ou manual, mediante o qual se verificará, diariamente, a entrada e saída do servidor em serviço” (destaques nossos). Na Portaria GR 6.720/2015, a redação do artigo 3º passou a ser a seguinte: “A frequência diária dos servidores será apurada por meio de identificação biométrica em equipamento de Registro Eletrônico de Ponto (REP)” (destaques nossos). Como explicar mudança tão drástica em tão pouco tempo?

Simples: a decisão partiu de uma “reunião de dirigentes” (a instância paralela predileta dos reitores desde a gestão de J.G. Rodas), realizada em Piracicaba em 11/12/2015, da qual participaram diretores de unidades e outros gestores mandatários: “A pedido dos dirigentes, a portaria que regulamenta o controle do ponto será reeditada pelo reitor [Marco Antonio Zago], uniformizando o procedimento em todo o âmbito da universidade. Em virtude disso, não cabe submeter o assunto à deliberação de colegiados locais (CTA, congregação ou conselho deliberativo)”. Não basta tomar uma decisão que afetará a vida de todo o corpo de funcionários, é preciso evitar que ela seja discutida!

Regulamentado pela Portaria 658/16 da Codage, o SREP tem provocado conflitos e suscitado resistência organizada de funcionárias e funcionários em algumas unidades nas quais laboratórios de pesquisa, biotérios, centros e serviços de formação, pesquisa e extensão desempenham papel central, tais como o próprio IP, o Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) e a Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF), mas também em outras cujas tarefas de pesquisa exigem longas jornadas e longa permanência em locais distantes, como aquelas executadas pelos funcionários que trabalham nas embarcações do Instituto Oceanográfico (IO). A julgar por uma ação judicial que chegou ao Tribunal de Justiça (TJ-SP), o ponto eletrônico afetou até mesmo um setor de elite dos servidores da USP: os procuradores da universidade, isto é: seus advogados.

“O trabalho tem que se adequar ao regime do ponto, portanto são impostas mudanças na natureza do trabalho”, explica a psicóloga Tatiana Freitas Stockler das Neves, do CPAT. Ou, dizendo de outro modo, em referência direta ao que ocorre no próprio IP: “Há uma tentativa de escamotear o trabalho desenvolvido aqui”. Impedidos os trabalhadores de realizar a contento a maior parte de suas tarefas de pesquisa e extensão (típicas da universidade pública e gratuita, diga-se), porque seus regimes de trabalho e horários não se enquadram no rigorismo do ponto eletrônico e das normas estritas baixadas pelo setor administrativo da unidade, compromete-se a integralidade do projeto acadêmico do IP, historicamente construído.

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Adriana Marcondes

O cenário nesse instituto foi assim sintetizado num dos documentos do CPAT: “Esta unidade possui um conjunto de atividades e trabalhos cuja natureza e organização envolvem uma variabilidade e especificidade de horários e locais de trabalho incompatíveis com a utilização de marcação de ponto por meio de registro eletrônico (REP)”. Trata-se do trabalho desenvolvido por técnicos de apoio ao ensino e à pesquisa — assistente social; educadora; psicólogas e psicólogos; e demais técnicos de laboratório de nível médio e nível superior — “primordial para o cotidiano do instituto no que tange a uma série de atividades de formação, pesquisa e projetos técnicos de intervenção/assessorias”.

Em decorrência do regime de ponto eletrônico, o trabalho técnico-acadêmico desenvolvido no IP, com suas múltiplas facetas e conexões, é desnaturado, tornando-se abstratamente, supostamente, trabalho “administrativo”. “Ouvimos isso numa reunião: que não somos técnicos, mas ‘administrativos’. Os setores administrativos passam a se ver e a atuar como aqueles que teriam o papel de “gerenciar” o trabalho acadêmico dos técnicos”, relata Tatiana. Em outras palavras, resume a assistente social Selene Onila Thomaz, do Centro-Escola do Instituto de Psicologia (CEIP), “a área administrativa tem o poder de analisar o que você faz e ditar o que é ou não relevante”.

Como agravante, algumas chefias passaram a ouvir da Assistência Administrativa do IP a ameaça declarada de que, caso sejam realizadas horas-extras pelos servidores, o pagamento sairá do orçamento do Instituto ou de seus bolsos! Assédio moral institucional, com o agravante de que os assediados não o denunciam, mas ao invés disso silenciam, temerosos de retaliações.

SREP é extemporâneo e vinculado ao modelo taylorista-fordista

“Se o discurso é a ‘Universidade do Futuro’, é cortar a burocracia, ele não é compatível com o relógio de ponto, que é vinculado ao modelo taylorista-fordista, fabril, e que veio de maneira extemporânea”, argumenta a professora Adriana Marcondes, do IP, e coordenadora do Serviço de Psicologia Escolar (SePE).

A implantação do novo sistema deu-se de forma abrupta, sem orientação prévia, e (como já mencionado) sem qualquer diálogo ou conhecimento da real dimensão dos trabalhos realizados. Diante desse quadro, foram surgindo conflitos, gerando nos funcionários a sensação de desrespeito, humilhação, insegurança. “As pessoas se perguntam: ‘Qual o sentido de estarmos aqui?’. Esse sentido está sendo esvaziado”.

O SREP não é integrado, o que é um complicador adicional, pois a integração permitiria que o funcionário batesse o ponto em outro local de trabalho ou unidade que não a sua, caso estivesse por exemplo numa reunião ou atividade de extensão conjunta (o que ocorre frequentemente). Além disso, o equipamento apresenta falhas de funcionamento e requer manutenção permanente que se supõe seja dispendiosa, levando à pertinente indagação: será que a compra desse pacote tecnológico, que afeta tão drasticamente a vida dos funcionários da USP, atendeu, subsidiariamente, a interesses menores?

No documento intitulado “Carta à Comunidade do IPUSP”, elaborado em decorrência de assembleia dos funcionários realizada em 26/4/2018, a questão do ponto eletrônico é retomada: “Desde a implantação do Registro Eletrônico de Ponto (REP), um conjunto de questões, problemas e irregularidades ocorreram e outras ainda persistem, tais como elencados em documentos produzidos pelos funcionários do IP (‘Levantamento sobre problemas relacionados à instalação do Registro Eletrônico de Ponto (REP) no Instituto de Psicologia da USP’, maio de 2017; ‘2o Levantamento sobre problemas relacionados à instalação do Registro Eletrônico de Ponto (REP) no Instituto de Psicologia da USP’, junho de 2017)”.

“Como exemplo”, prossegue o documento, “tivemos a desconsideração das decisões de chefias imediatas acerca da regularização do REP ao serem feitas alterações sem a ciência das mesmas. Outro aspecto tem sido os questionamentos referentes às marcações de trabalhos cuja alçada decisória se dá, de acordo com a Codage, no âmbito das chefias e não da administração”.

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Maria Luisa Sandoval Schmidt

A verdade é que, no IP como em outras unidades, o SREP combinou-se à perfeição com a cultura autoritária da USP, como observa a professora titular Maria Luisa Sandoval Schmidt, coordenadora do Serviço de Aconselhamento Psicológico (SAP): “Alguns professores acham-se superiores aos funcionários. No SAP, assim como em outros serviços e laboratórios, trabalhamos juntas, docentes e funcionária; construímos os projetos pedagógicos e de prestação de serviço juntas; e alguns colegas são incapazes de entender a relação horizontal que criamos nas nossas equipes”.

Essa tradição autoritária estimula a criação de hierarquias fictícias e anima algumas chefias a questionar técnicos de nível universitário que se “atrevem” a publicar papers ou participar de bancas, mesmo quando tais atividades são perfeitamente compatíveis com as descrições dos editais de contratação, ou quando fazem parte de projetos que articulam ensino, pesquisa e extensão apresentados (e aprovados) como requisito para disputa dos cargos por eles exercidos na USP.

Quando teoriza sobre tais casos, a equipe do CPAT não precisa ir longe. Flávio Ribeiro, que integra o centro, experimenta esse tipo de perseguição na própria pele. Como diz a psicóloga Tânia Pessoa de Lima, do Laboratório de Estudos da Personalidade (LEP): “Estamos sendo afetados”, apontando o resultado desse processo de desvalorização que o SREP potencializa: “Desmotivação”.

A falácia de que o ponto eletrônico impede processos judiciais

No “Dossiê sobre o registro eletrônico de ponto na USP”, documento elaborado em fevereiro de 2017 (quando o SREP ainda não estava totalmente implantado), o CPAT centra suas críticas em dois eixos: a desnecessidade do sistema e a falácia de que sua adoção impedirá eventuais processos judiciais contra a USP, que não chegou a ser posta no papel, mas foi verbalizada como justificativa em algumas unidades da universidade. Um dos argumentos apresentados pelo então superintendente da Codage, Marcelo Dottori, em reunião mantida com o pessoal do IP foi o da necessidade institucional de adesão ao SREP devido a processo envolvendo controle de frequência de servidores.

O “Dossiê” destaca, preliminarmente, que de acordo com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é necessária a anotação da frequência em estabelecimentos com mais de dez trabalhadores, mas não há obrigatoriedade de algum tipo específico de controle: “A obrigatoriedade se refere ao registro, mas não se ele deve ser manual, mecânico ou eletrônico, validando tanto a utilização de folhas avulsas de ponto como livros de ponto, dentre outros”. Assim, caberia à universidade e às unidades considerarem os modos mais pertinentes de registro, de acordo com as suas especificidades.

“Desse modo”, questiona o documento do CPAT, “não caberia às unidades ter um mínimo de autonomia e decisão frente a essa questão, o que possibilitaria à comunidade universitária decidir, a partir de sua realidade local e sua história, formas mais adequadas de registro de entrada e saída do trabalho, bem como do período de repouso?”

Ademais, nenhuma das diferentes formas de registro impede, por si só, que as instituições empregadoras sofram processos trabalhistas, adverte o “Dossiê”, caso haja prova material que demonstre a extensão da jornada para além do que foi registrado, mesmo eletronicamente. Mais ainda, continua: “Com relação ao REP há inclusive ações favoráveis aos trabalhadores(as) que entraram com processos trabalhistas (bem como nos casos de registro mecânico ou manual), criando um conjunto de jurisprudências”, as quais “ajudam a problematizar o ideário de que colocar um registro eletrônico de ponto diminuirá os processos trabalhistas contra a universidade e as possíveis perdas com esses processos”.

Na verdade, acrescenta, a única maneira de obter tal redução do número de ações trabalhistas seria “que as organizações e instituições deixem de adotar práticas não permitidas de extensão de jornada de trabalho (dentro e fora dos estabelecimentos) e cumpram de fato a legislação vigente com relação às horas de descanso”.

Ainda segundo esse documento do CPAT, “até o momento a forma usual de registro manual não tem impedido o bom andamento institucional, pelo contrário, a USP e suas unidades têm obtido grande reconhecimento nacional e internacional, contando com o trabalho de servidores técnico-administrativos e docentes e com as atividades desenvolvidas por estudantes e pesquisadores”, sendo que “o registro manual de ponto é requisito fundamental, no caso de servidores técnico-administrativos”.

Lacunas e inconsistências do Manual de Frequência da Codage

O “Dossiê” elaborado pela equipe do CPAT também aponta lacunas e inconsistências do Manual de Frequência, documento editado pela Codage com a finalidade de orientar e normatizar o registro de ponto na USP.

Uma das questões apontadas diz respeito ao item 3.1.1, “Deveres da chefia imediata”, em especial “encaminhar o registro de frequência com as devidas anotações para as providências da área de pessoal no primeiro dia útil subsequente ao período de apuração”. O CPAT considera, em vista disso, que “mesmo com o REP cabe às chefias imediatas a responsabilidade, compartilhada com o servidor, das devidas anotações rotineiras e em situações de ocorrências [eventualidades ‘que alteram, de maneira não habitual, a jornada de trabalho diária’]”. Porém, indaga, “como fica a assinatura da chefia imediata no caso do REP?” E acrescenta: “No disposto não se aborda especificamente como proceder em caso de falha do equipamento e do sistema no REP, quando do registro de entrada e/ou saída não ter sido possível por falha”.

Igualmente relacionado ao papel da chefia imediata, mas com outras implicações, é o tópico 3.3.1 do Manual de Frequência que discorre sobre “casos excepcionais” que em tese autorizariam a substituição do REP por um registro manual: “A fiscalização e o controle do horário de trabalho dos servidores são de responsabilidade da chefia imediata, sendo vedada, em regra, a dispensa de registro eletrônico. Em casos excepcionais e de força maior que impossibilitem o registro eletrônico — que serão oportunamente elencados pela Codage — a chefia imediata deverá adotar o registro da frequência em boletim de frequência manual”.

Após constatar que este é um ponto de grande relevância, o “Dossiê” indaga: “Considerando a complexidade das diferentes formas de atuação na universidade, como a Codage irá elencar o que será considerado excepcional? Como farão isso, se já houve instalação do ponto em parte das unidades sem esta prévia definição e debate?” (O documento foi finalizado em fevereiro de 2017, quando o SREP estava ainda em processo de implantação.)

Outra questão problemática é a responsabilização exclusivamente do servidor no tocante a utilizar o ponto eletrônico como “correta aferição de sua pontualidade e assiduidade”, encontrada no mesmo item 3.3. do Manual de Frequência (“O registro de ponto eletrônico é de responsabilidade individual do servidor” etcétera), pois, segundo o CPAT, há notícia de inúmeros problemas ocorridos com equipamentos de REP em instituições públicas e empresas privadas.

O “Dossiê” conclui que o Manual de Frequência “mantém o reconhecimento da existência de duas formas de registro, sendo que o [S]REP impossibilita as devidas correções de ocorrências em tempo e que [tais ocorrências] poderão gerar problemas mesmo para o servidor que esteja cumprindo suas atividades, assegurados seus direitos pelas legislações vigentes”.

Por outro lado, contraditoriamente, esse manual da Codage reconhece que trabalhos realizados fora da unidade ou fora da USP são atividades de trabalho e, como tal, não podem ser considerados afastamentos, o que os enquadra no âmbito das rotinas de trabalho, no caso realizadas fora do local de lotação do servidor: “Atenção: não se considera afastamento a realização de atividades de trabalho que o funcionário venha a executar fora do seu local habitual de lotação (exemplo: especialista de laboratório em trabalho de campo; secretário que vai participar de encontro institucional em outros campus da própria USP; servidor de unidade do interior que está designado para exercer atribuição em São Paulo, entre outros)”, diz à página 8 o Manual de Frequência.

Imagem padronizada e estereotipada de trabalho fabril

As mais contundentes críticas conceituais do “Dossiê” ao SREP são encontradas na seção intitulada “Especificidades da Universidade de São Paulo”, que aponta o caráter fabril e homogeneizador do novo sistema de ponto e suas implicações conflitivas no atual cenário da instituição.

“Entende-se que o registro de ponto manual atualmente é o dispositivo legalmente garantido e que permite, ao mesmo tempo, obedecer à legislação vigente na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e às especificidades existentes em diferentes unidades e na Universidade. Além disso, o estabelecimento de controle, aferição e marcação no formato de relógio de ponto eletrônico supõe que a realização de trabalhos na universidade e em suas diferentes unidades dá-se de modo homogêneo, em um mesmo local de trabalho e em um mesmo padrão de horários diários, semanais e mensais”, diz o documento. “Busca equivaler o trabalho universitário a uma imagem padronizada e estereotipada de trabalho em uma fábrica, não considerando a natureza do trabalho realizado na academia e tampouco as novas e diversas modalidades de trabalho existentes nas diferentes organizações e instituições”.

A Portaria Codage 658/2016, diz o “Dossiê”, traz elementos de regulação necessários para atividades realizadas em outro local (externo à unidade) ou em um horário diferente quando se trata de situações de exceção no cotidiano de trabalho. “Porém, quando essas situações são a regra, ou melhor, a rotina de trabalho, os procedimentos sugeridos tornam-se inviáveis. Atualmente a Universidade conta com a realização de atividades de trabalho no plano administrativo e no plano acadêmico que exigem horários específicos de trabalho, além de locais diferenciados e mutáveis”.

O documento do CPAT considera que, como a USP “não dispõe de verbas para pagamento de horas-extras em volume necessário para cobrir as necessidades de pessoal das unidades — e uma vez que a realidade da universidade compreende uma série de atividades rotineiras administrativas e acadêmicas em horários mutáveis e um conjunto complexo de atividades cotidianas acadêmicas externas às unidades e ao campus — torna-se inexequível a colocação de horários repetidos todos os dias rigidamente no formato de relógio eletrônico”.

Avalia, ainda, que diante da finalização do segundo PIDV, congelamento de vagas e aposentadorias em andamento, as unidades tiveram seus quadros de servidores técnico-administrativos “dramaticamente reduzidos”, o que as levou a desenvolver atividades “em horários diversificados para poder realizar com a qualidade necessária a formação, a pesquisa e a extensão, além de atividades correlatas”. Salienta igualmente que “a política de compensação de horas ou uma política de banco de horas (com acordo coletivo necessário para tanto) não darão conta dessa situação, uma vez que as horas para cobrir o trabalho terão, depois, que ser usufruídas, o que é um direito assegurado em lei, mantendo algum trabalho descoberto em um ciclo contínuo”.

A respeito dos horários diversificados e específicos, o “Dossiê” cita como exemplos: “a) realização de defesas de bancas, reuniões de colegiado e concursos em horários estendidos (que contam com imprevisibilidades no horário por envolverem diversos membros de outras instituições); b) realização de eventos em diferentes horários e dias da semana; c) realização de trabalhos institucionais externos ao campus (trabalhos de formação, extensão e pesquisa; cursos; comissões e reuniões interinstitucionais; eventos obrigatórios etc.); d) trabalhos em fins de semana e/ou feriados; e) elaboração ou finalização de materiais, relatórios, etc. em casa, após expediente; f) recebimento e resposta de mensagens de trabalho pela Internet fora do horário de trabalho; g) recebimento e/ou resposta de mensagens e atendimento de ligações de trabalho pelo celular fora da universidade e após o fim do expediente; h) utilização de WhatsApp e demais ferramentas como instrumentos de trabalho, antes ou depois do horário de expediente; i) realização de trabalhos fora do campus, em outras cidades e comunidades, em localidades distantes da USP, em locais afastados de centros urbanos etc”. Todas essas atividades, acrescenta, “solicitam postos de trabalho e servidores técnico-administrativos com horários específicos e diversificados, como anteriormente apontado”.

Procurada pelo Informativo Adusp para comentar as questões relacionadas ao SREP, a Codage não se pronunciou até o momento de publicação desta matéria.

“Precisamos falar sobre condições de trabalho no ICB”

Não é difícil entender por que razão, no ICB, o SREP provoca indignação entre os funcionários. Nessa unidade, o equipamento eletrônico de ponto é vinculado fisicamente a dois outros aparelhos de finalidades repressivas: bloqueio, ou catraca, e câmera de vídeo. Uma funcionária terceirizada foi destacada para monitorar o ponto, o que aumenta a pressão sobre os trabalhadores. Edição de maio deste ano do Boletim dos Funcionários do ICB, destinada a convocar a assembleia que seria realizada em 23/5, destacava: “O que está em risco neste momento não é apenas tudo que conquistamos ao longo dos anos com muita luta, estão sendo ameaçadas as condições de trabalho, a manutenção do emprego, os direitos e a nossa dignidade”.

O ponto eletrônico, dizia a publicação, “vem sendo utilizado como instrumento de ameaça e punição por algumas chefias na USP”. No ICB, continuava, “este tema tem gerado polêmica e também foi abordado na ultima reunião do CTA [Conselho Técnico-Administrativo], em maio, de forma muito destrutiva e equivocada”. Mais: “Controle de ponto não pode ser utilizado como instrumento de assédio moral e a valorização se dá pela qualidade do nosso trabalho, pela nossa dedicação e o comprometimento de cada funcionário, independente de sua função ou do setor que trabalha”.

Daniel Garcia
Vera Helena Monezzi

Um caso típico de comportamento persecutório baseado no SREP foi protagonizado pelo vice-chefe do Departamento de Fisiologia e Biofísica do ICB, professor José Donato Junior, que decidiu por conta própria punir a funcionária Vera Helena Monezzi, experiente ativista sindical, por suposto atraso na entrada, na data em que ela compareceu a uma audiência judicial na condição de testemunha convocada pela Justiça do Trabalho.

O vice-chefe cuidou de enviar e-mail ao Departamento de Recursos Humanos (DRH) da unidade, nos seguintes termos: “No dia 13/11 a funcionária Vera Helena Monezzi compareceu a uma audiência no Fórum do Trabalho e tem um atestado de dispensa válido para o horário das 8:30 até 9:00. Seu horário normal de entrada é às 9:00. Uma vez que a funcionária não apresentou ponto de entrada nesse dia, eu segui orientação do CTA e pedi para que nossa secretaria obtivesse o horário de entrada do crachá da funcionária na catraca. O horário de entrada da funcionária foi às 13:49”.

Após introduzir o “problema”, o vice-chefe anuncia ao DRH a “solução” que julga ser a mais adequada: “Considerando um tempo razoável de deslocamento do Fórum do Trabalho para o ICB, solicito que sejam abonadas 2 horas, o que permitiria que a funcionária pudesse [sic] iniciar seu expediente às 11:00. Porém, como seu expediente iniciou apenas às 13:49, solicito que sejam descontadas 2 horas e 49 minutos desse dia”.

Em carta à chefe do departamento, professora Maria Tereza Nunes, Vera descreveu o incidente: “No dia 13 de novembro de 2017, fui convocada para uma audiência no Fórum Trabalhista de São Paulo na Barra Funda, marcada para acontecer às 8h30 e que terminou às 9h30. Este horário é o tempo que estive na sala de audiência, depois disso, além de acertos que tive que fazer com minha advogada, transportei para diferentes lugares em meu carro as testemunhas que participaram da audiência. Este operativo demandou mais tempo para que me apresentasse ao meu local de trabalho. Para atestar este dia a juíza que conduziu a audiência, conforme manda a lei, forneceu atestado pelo meu comparecimento, para que eu não tivesse nenhum desconto ou prejuízo, por ter participado da respectiva audiência. Ocorre que ao apresentar o atestado no departamento, o vice-chefe em exercício, professor Donato, calculou o tempo e a distância do Fórum até o ICB da forma dele e entendeu que eu teria duas horas para chegar ao ICB”.

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Câmera de vídeo em funcionamento na entrada do ICB

Ainda segundo a carta, o vice-chefe, “após verificar as câmeras para saber a que horas cheguei ao prédio, pois trabalhei e registrei a saída neste dia”, resolveu solicitar o desconto mencionado. “Procurei o Professor para explicar com mais detalhes o que ocorreu e pedi que evitasse que eu tivesse prejuízos, pois apresentei atestado assinado por uma juíza. Mas a conversa não adiantou e o professor não concordou com minhas explicações e nem com o atestado, mantendo sua decisão”. Então, a advogada de Vera entrou em contato com o DRH para lembrar a existência do artigo 822 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT): “As testemunhas não poderão sofrer qualquer desconto pelas faltas ao serviço, ocasionadas pelo seu comparecimento para depor, quando devidamente arroladas ou convocadas”. Depois de indagar se estaria a USP “se negando a cumprir uma norma legal e a declaração proferida por um juiz?”, requereu “seja abonado o período de horas descontado, sob pena de comunicação imediata à DRT e Ministério Público do Trabalho, sem prejuízo ao empregado”.

A reunião do CTA ocorrida em 16/5/2018, citada no Boletim dos Funcionários, fornece outro exemplo do tipo de perseguição ensejada pelo SREP no instituto. Um relato da assistente técnica de direção sobre “problemas com relação ao adequado tratamento aos funcionários terceirizados que atuam nas portarias do ICB”, referência indireta a conflitos relacionados ao SREP, foi seguido de um pedido a todos para que “colaborem com as portarias, apresentando a identificação (cartão USP) sempre que solicitado”. A assistente, continuou, “tem recebido denúncias de que servidores técnicos-administrativos têm registrado a presença no ICB, inclusive com compensação de horas, sem estar[em] efetivamente em seu[s] posto[s] de trabalho; destaca que tal fato pode ser caracterizado como improbidade administrativa”. Eis que a direção da unidade se pronuncia: “O Senhor Diretor informa que todas as chefias têm autorização do CTA para consultar os dados de acesso pela catraca, em caso de ocorrências desse tipo” (confira aqui a ata da reunião).

Representante dos funcionários no CTA, Vera protestou imediatamente: “A forma como o assunto está sendo tratado pelo CTA é um massacre dos servidores, pois o registro de frequência se torna uma medida punitiva”, além do que “o quadro funcional da USP está cada vez menor, e os servidores têm se desdobrado para atendimento de todas as necessidades administrativas e acadêmicas da Unidade”. Em resposta, o diretor Luís Carlos de Souza Ferreira comentou que “cabe às chefias apurar eventuais irregularidades realizadas por seus subordinados”.

A mobilização contra o SREP é antiga no ICB. Em 29/1/2016, uma grande assembleia de funcionários do instituto, tendo como pauta exclusiva a questão do ponto eletrônico, reivindicou o cancelamento da Portaria GR 6.720/2015,

Daniel Garcia
Funcionários do ICB: mobilizados contra as perseguições

que impôs a obrigatoriedade do REP para todas as unidades. Um abaixo-assinado foi elaborado, sintetizando a posição da categoria: “A defesa do atual modelo de controle manual da jornada de trabalho e a contrariedade à imposição do ponto eletrônico foi aprovada por unanimidade dos trabalhadores do ICB que realizaram assembleia para deliberar sobre o tema, pois as características e a rotina do trabalho realizados na universidade não são compatíveis com o controle rigoroso de horário como é o caso do ponto eletrônico, pois boa parte dos trabalhadores tem horários de entrada e saída diferenciados e flexíveis, sendo que o ponto eletrônico vai aumentar o número de horas-extras e exigir acordos de compensação e prorrogação de jornada de trabalho, e com certeza será prejudicial para os trabalhadores e o funcionamento da universidade”.

Por meio do correio eletrônico, o Informativo Adusp encaminhou perguntas ao professor José Donato Junior, vice-chefe do Departamento de Fisiologia e Biofísica, bem como ao diretor e ao vice-diretor do ICB, professores Luís Carlos de Souza Ferreira e João Gustavo Mendes. Posteriormente, procurou entrar em contato telefônico com eles, no ICB, para que se pronunciassem a respeito dos fatos relatados, porém o setor de Comunicação Institucional da unidade informou que todos se encontram em período de férias.

“Ponto eletrônico pertence ao pacote de ajuste fiscal da Reitoria”

Sintusp
Felipe Tomasi Cavalheri

Ao comentar a questão do SREP para o Informativo Adusp, Felipe Tomasi Cavalheri, técnico em segurança do trabalho no Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT-USP), trata de situá-la no contexto mais amplo da política de “ajuste fiscal” e desmonte da universidade, implantada desde a gestão M.A. Zago-V. Agopyan (2014-2017).

“O corte do orçamento para todas as áreas, inclusive centrais, como graduação, pós-graduação e extensão, o projeto de desvinculação dos Hospitais e centros de saúde-escola, de fechamento de creches, o arrocho salarial, a terceirização de bandejões, prefeituras, serviços de limpeza, vigilância e manutenção vieram em um pacote que contou com a suspensão das contratações tanto de docentes como de servidores técnico-administrativos e dois PIDVs (Programas de Incentivo à Demissão Voluntária)”, avalia.

“A padronização do registro de ponto eletrônico para servidores técnico-administrativos em toda a USP foi realizada entre 2016 e 2017, e o sistema hoje está plenamente implantado e operante. Entendemos a decisão por este sistema como uma escolha política pertencente ao mesmo pacote de medidas por parte da Reitoria, com suporte do governo Alckmin”.

Cavalheri observa que a USP cresceu muito nos últimos vinte anos em todos os indicadores de resultados: número de campi, de cursos, de estudantes, de mestrados e doutorados iniciados e concluídos, de publicação de pesquisas. “Entretanto, o crescimento da quantidade de trabalhadores docentes e não-docentes não acompanhou este crescimento, e o resultado do encadeamento destes fatores é uma sobrecarga de trabalho muito grande para quem ficou”, destaca.

“Neste sentido, o aumento da rigidez imposto pelo sistema eletrônico de registro de ponto e a implementação do banco de horas são ferramentas para aumentar a exploração do trabalho na USP, pois há menos trabalhadores do que o necessário para atividades as mais diversas, de biotérios a laboratórios didáticos e de pesquisa, de creches a restaurantes, de setor em setor do HU, que conta com uma redução de leitos e atendimentos da ordem de 40%, de serviços de informática à manutenção e uma longa lista de atividades”.

O técnico do SESMT assinala que o assédio moral, “prática execrável de chefias com objetivo de pressionar trabalhadores por mais produtividade ou pura e simplesmente para demonstrar poder e humilhar subordinados”, tem crescido “vertiginosamente” e vem causando grande quantidade de adoecimentos de ordem psíquica, registro de Comunicações de Acidente do Trabalho (CAT) e afastamentos, com grande prejuízo pessoal para os trabalhadores. “O sistema eletrônico [SREP] faz aumentarem os casos, pois além das pressões relacionadas diretamente ao trabalho há ainda tensionamentos com as chefias em relação à compensação de horas e cumprimento das jornadas, equiparando a universidade a uma indústria sem considerar as distintas características do trabalho sob a realidade do ensino, pesquisa e extensão”.

Em muitas unidades ocorrem também prejuízos ao próprio desenvolvimento dos trabalhos por causa do SREP, explica Cavalheri. “Procedimentos experimentais como os de física e química executados em laboratório, o tratamento de animais em biotérios e atividades com eles são exemplos de tarefas que não obedecem à lógica fria da jornada diária e precisam de métodos mais flexíveis para a garantia dos resultados esperados”.

Ele acredita que as movimentações em unidades como IP, ICB e FCF devem repercutir em outros locais de trabalho da USP e no próprio movimento sindical, “e tudo isso deve desencadear uma reflexão mais profunda no segundo semestre deste ano sobre o ponto eletrônico e o banco de horas, já que em 30/9 o Acordo Coletivo de Trabalho expirará e serão debatidos os termos de um eventual novo acordo para o biênio 2018-19”. O Sintusp estimulará “todas as discussões e mobilizações necessárias para reverter este quadro, seja pelas nossas condições de vida e trabalho, seja pela defesa da própria USP”, diz Cavalheri, que é membro da diretoria colegiada do sindicato.

EXPRESSO ADUSP


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