Poucos dias depois da divulgação do caso da professora Maria Caramez Carlotto, docente da Universidade Federal do ABC (UFABC), mãe de duas crianças – que foi avaliada de modo desfavorável no processo de concessão de uma bolsa de produtividade (PQ) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq sob a alegação de que “provavelmente suas gestações atrapalharam […], o que poderá ser compensado no futuro” –, a Diretoria Executiva da agência estabeleceu uma extensão do período de avaliação da produtividade levando em conta a parentalidade.

No último sábado (6/1), o colegiado publicou Nota Informativa na qual comunica que passa a ser “obrigatório incluir o critério de que o período de avaliação da produtividade científica da(o)s proponentes seja estendido por dois anos, para cada parto ou adoção que ocorrer dentro do prazo estipulado na chamada”.

Em relação aos “casos específicos divulgados de pareceres preconceituosos”, a Diretoria Executiva determinou “que seja imediatamente aberto um procedimento investigativo para analisar a elaboração e o processamento dos pareceres ad hoc emitidos na correspondente Chamada CNPq nº 09/2023”. A decisão final sobre os projetos apresentados pelas pesquisadoras que receberam esses pareceres “dependerá da análise dos recursos por elas apresentados, dentro do prazo recursal”, diz ainda a nota.

A Diretoria Executiva afirmou também que “identificou a necessidade urgente de revisão e aprimoramento da Resolução Normativa 002/2015”, para deixar mais claros “os procedimentos e compromissos éticos na avaliação de propostas submetidas ao CNPq e as penalidades pelo seu não cumprimento” e criou um Grupo de Trabalho “para elaborar um Código de Ética para os membros dos CAs [Comitês Assessores] e assessores ad hoc, no prazo de dois meses”. O GT será formado por cinco a sete membros da comunidade científica e servidores(as) do CNPq, indicados(as) pela Presidência, e deve iniciar os trabalhos no mês de fevereiro.

Mulheres recebem apenas 35,6% das bolsas PQ da agência

Em comentário que publicou em sua página no Facebook ainda no sábado – dia em que concluiu o recurso a ser enviado à agência –, a professora Maria Carlotto avalia que as medidas representam “avanços importantes” e incorporam ações sugeridas por movimentos de cientistas mães, em especial o Parent in Science.

No dia 2/1, o grupo encaminhou ao presidente do CNPq, Ricardo Galvão, um plano de ação para a diminuição das desigualdades na concessão de bolsas de produtividade em pesquisa. Levantamento do Parent in Science, publicado pela Folha de S. Paulo, mostra que as mulheres recebem 35,6% das bolsas PQ da agência, proporção que vem se mantendo há 20 anos.

“Espero que eles anunciem, em breve também, editais específicos para mães e mudanças no financiamento de bolsas no exterior que incluam recursos adicionais para que possamos levar nossos/as filhas. Em todo caso, hoje podemos comemorar essa vitória. Avante!”, prossegue Maria Carlotto.

A professora divulgou o ocorrido em sua conta na rede X (antigo Twitter) no final do ano passado, e rapidamente dezenas de outras pesquisadoras se manifestaram relatando que também haviam recebido pareceres com teor discriminatório.

A repercussão do caso levou a Diretoria Científica do CNPq a publicar uma Nota de Esclarecimento no dia 27/12 do ano passado na qual afirma que o juízo expressado no caso de Maria Carlotto “é inadequado tanto porque um estágio no exterior não é requisito para a concorrência em tal edital quanto por expressar juízo preconceituoso com as circunstâncias associadas à gestação” e, portanto, não é compatível “com os princípios que regem as políticas desta agência de fomento”.

A Diretoria Científica afirmou ainda que “tal juízo foi formulado em parecer ad hoc, não tendo sido corroborado pelo comitê assessor responsável pelo julgamento”. “O CNPq tem como valores a busca de maior inclusão considerando dimensões de gênero, étnico-raciais e assimetrias regionais e não tolera atitudes que expressem preconceitos de qualquer natureza, sejam eles de gênero, raça, orientação sexual, religião ou credo político”, prosseguiu. O colegiado concluiu a nota afirmando que a agência passará a instruir seu corpo de pareceristas “para maior atenção na emissão de seus pareceres” e comunicou que levaria o caso à Diretoria Executiva.

Na avaliação da professora Annie Schmaltz Hsiou, 1a. secretária da Diretoria da Adusp, o caso evidencia não apenas a desigualdade de gênero no processo de concessão de bolsas de produtividade pelo CNPq, “mas também destaca a presença do sexismo arraigado na ciência e na academia”.

“A extensão do período de avaliação considerando a parentalidade é um passo positivo, porém mantém-se a necessidade urgente de desafiar estereótipos de gênero. A persistência da visão cultural que coloca as mulheres como as principais responsáveis pelo cuidado de filhos(as) e membros da família perpetua a reprodução social do trabalho”, afirma.

Annie Schmaltz Hsiou considera que a estatística alarmante de que apenas 35,6% das bolsas PQ são concedidas a mulheres “destaca a longa jornada que ainda temos pela frente na superação desses desafios”. “É crucial repensar a lógica de uma ciência masculinizada, baseada exclusivamente na produtividade, meritocracia e quantificação do saber, para incorporar as demandas das mulheres, pois existem assimetrias muito evidentes entre os impactos da parentalidade entre homens e mulheres. Nesse caso, as mulheres são as maiores prejudicadas”, ressalta.

Várias entidades e grupos manifestaram repúdio à avaliação do CNPq e solidariedade à professora Maria Carlotto. A Reitoria da UFABC divulgou nota na qual diz que tomou conhecimento da notícia “com profunda perplexidade e indignação” e “clama para que nenhuma outra pesquisadora brasileira tenha que lidar com situação similar”. O Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) expressou solidariedade e apoio à professora e afirmou que a avaliação “emitiu um juízo de valor permeado por preconceitos, revelando uma postura machista e misógina, impregnada de viés de gênero”. Já o Parent in Science considera que o parecer não expressa “uma simples crítica”, mas constitui “uma violência e assédio inaceitáveis”.

EXPRESSO ADUSP


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