Movimentos negros defendem cotas étnico-raciais e bancas de heteroidentificação na USP, contra ofensiva desfechada por jornais
Mesa do ato-debate em defesa da cota, realizado na FFLCH em 13/3 (foto: Daniel Garcia)

O Núcleo de Consciência Negra (NCN) promoveu, no dia 13 de março, um “ato-debate” intitulado “Aquilombar: em defesa das cotas étnico-raciais na USP”. O evento, realizado no prédio das Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), foi uma resposta àquilo que o NCN entende ser “um ataque frontal à política de cotas étnico-raciais”, desfechado por meio de um editorial do jornal Folha de S. Paulo, publicado após grande repercussão de uma reportagem sobre possíveis erros cometidos por bancas de heteroidentificação da USP.

“Não descontextualizamos este ataque, o vemos como uma reação à vitória importante e recente que foi a ampliação e renovação da Lei de Cotas em nível federal e por isso compreendemos a necessidade de uma resposta contundente dos movimentos negros de toda USP, mas também da cidade de São Paulo”, destacou o NCN no convite do ato-debate.

Simone Nascimento, coordenadora estadual do Movimento Negro Unificado (MNU) e codeputada estadual pela Bancada Feminista do PSOL, destacou na sua fala a importância da existência de movimentos organizados que impulsionam a discussão e, de maneira permanente, “constroem nossas lutas e bandeiras”, citando como exemplo o NCN, a Coalizão de Coletivos Negros da USP e os coletivos de juventude.

“Quando houve um processo de ofensiva, inclusive na imprensa burguesa, com relação às bancas de heteroidentificação, o NCN já estava pautando um debate em torno da sua bandeira de luta permanente”, afirmou. A questão das cotas raciais, lembrou, faz parte de um processo nacional de luta e disputa pelos rumos da educação no Brasil, o que explica o fato de que veículos de imprensa sintam-se “extremamente confortáveis” em criticá-las [ainda que elas já pareçam consolidadas].

Simone, que é mestranda na USP, observou que a universidade só aprovou tardiamente (em 2017) o ingresso por cotas étnico-raciais. “As cotas raciais já haviam sido disputadas, construídas e aprovadas em todo Brasil antes de serem aprovadas aqui na Universidade de São Paulo, e nunca deixou de haver luta na USP pela aprovação das cotas raciais. O NCN nasceu em 1993, começou a fazer uma discussão muito intensa com outras entidades da luta pela educação, os estudantes e as categorias, como a Adusp, da fundamental importância de que a USP fosse também um espaço de acesso da juventude negra”.

Daniel GarciaDaniel Garcia
Aspecto do plenário no Auditório 8 das Ciências Sociais

Rosa Baptista, aluna da Escola de Comunicações e Artes e representante do Diretório Central dos Estudantes (DCE-Livre “Alexandre Vannucchi Leme”), destacou na sua fala as origens oligárquicas da USP e a necessidade de democratização da universidade. “A USP foi fundada com o objetivo de ser um espaço dos filhos da elite paulistana. Do ‘povo’ cafeeiro, latifundiários, a ideia é que os filhos desses estudassem aqui para levar o Brasil em direção ao progresso. Não foi com o intuito de que corpos pretos e pessoas negras ocupassem o espaço enquanto formuladores de conhecimento”, pontuou.

“Ao mesmo tempo, foi necessário esses mesmos corpos pretos excluídos construírem esses prédios que a gente ocupa, manter essa universidade seja na limpeza, na segurança, no básico dela. Historicamente, desde sua fundação, a universidade tinha o objetivo de excluir a diversidade de pessoas nesse espaço”, resumiu. A seu ver, as investidas dos jornais Estadão e Folha de S. Paulo contra a política de cotas étnico-raciais representam não só “ataques ao enegrecimento da universidade”, mas a uma “ferramenta de ruptura” com o projeto original da USP, porque, continuou, “são as políticas de cotas e as bancas de heteroidentificação que mudam o sentido dessa universidade”.

Rosa apontou a necessidade de “avançar na produção de conhecimento”, e, ainda, questionou “onde é que a gente quer chegar, o caminho que a gente quer seguir”, apontando os limites da política de cotas. “A gente sabe que está muito longe de ser a universidade dos nossos sonhos, uma universidade efetivamente enegrecida. Vai ser preciso muita mobilização, muita luta, e há muito caminho para ela efetivamente ser da classe trabalhadora como um todo, da população negra”.

Regina Santos, outra liderança do MNU, que estudou Geografia na USP na década de 1980 (e foi diretora do DCE-Livre), relatou que eram raros alunos ou alunas negras na época. “Essa universidade não foi feita para nós, a nós foi negada inclusive a participação intelectual. Um dos fundadores da Poli [Escola Politécnica] é Teodoro Sampaio, geógrafo e engenheiro negro, que não tem a sua foto naquela sala de fotos dos diretores da Poli na história. Não tinha pelo menos, não sei se nos últimos seis anos colocaram”, revelou.

“Fiz discussão de cotas, participei da discussão da criação da banca de heteroidentificação, e queria dizer que não somos motivo da criação da banca de heteroidentificação. O que motivou a criação foi branco criminoso. Ele veio fraudar, e a gente tem uma história de fraudes, não só na USP, mas em curso de Medicina, de Direito”, disse. “Então, a gente tem que fazer uma defesa de cotas, das bancas de heteroidentificação, até a última possibilidade, porque essa universidade, ainda que as cotas estejam regulamentadas, muito tarde inclusive, desde 2018, ela ainda nega a nossa existência como produtora de conhecimento”.

“O epistemicídio é uma coisa que a gente tem que continuar combatendo, e não vai combater se não tiver negro aqui dentro. É essa questão que está posta: a nossa existência como construtora deste país, desta universidade, deste Estado”, frisou Regina. “A branquitude é um sistema que quer impossibilitar a nossa vida como construtoras dessa universidade, de conhecimento. Sinto muito, vão ter que nos engolir”.

José Adão de Oliveira, também do MNU, traçou na sua intervenção um breve retrospecto de algumas lutas contra a desigualdade racial no Brasil desde a Ditadura Militar, entre as quais um protesto nos portões da Fuvest, na entrada da USP, realizado em 1999 por estudantes ligados à organização Educafro, “exigindo acesso aos bancos da universidade”. Adão era um dos participantes. Ele avalia que essa manifestação provocou uma negociação com a Reitoria que resultou na criação do “Inclusp”, o primeiro programa de ações afirmativas da USP, abrindo caminho à posterior conquista das cotas e às bancas de heteroidentificação.

O ativista criticou fortemente o papel do ex-reitor da USP e ex-ministro José Goldenberg na discussão pública das cotas: “Após a aprovação da Lei de Cotas no Supremo [Tribunal Federal], ele liderou a desobediência institucional da USP, Unicamp e Unesp. Essas três universidades fizeram nota pública de não cumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal. Fiquei abismado, aqui é um espaço institucional, você tem que aprender com seus professores, seus mestres. E aí o ex-reitor fala que não é para obedecer à lei, ao Supremo Tribunal Federal, uma decisão que foi de 11 a zero. Para mim é o cúmulo do absurdo”.

Letícia Lé, advogada da Bancada Feminista do PSOL, contou haver se graduado na primeira turma de cotistas étnico-raciais da Faculdade de Direito da USP. “Fiz parte dessa turma que entrou em 2018, fruto de toda essa luta que veio antes da gente para conquistar as cotas étnico-raciais, e também fiz parte do que foi a primeira diretoria de maioria negra no Centro Acadêmico XI de Agosto, que é o centro acadêmico mais antigo do nosso país, um dos maiores da América Latina”.

A seu ver, a USP sempre foi a “retaguarda do avanço da política de cotas e políticas antirraciais” do país. “Isso não pode continuar acontecendo”, assinalou, rejeitando como inaceitável a “pressão de mídias burguesas, como é a Folha de S. Paulo”. Portanto, é necessário defender a política de cotas, ainda que ela seja insuficiente, em razão de retrocessos como o ‘Novo Ensino Médio’, que torna ainda mais difícil o obstáculo do vestibular.

Graças à presença de pessoas negras na USP, exemplificou Letícia, é que se descobriu que por décadas o corpo de uma mulher negra foi exposto, mumificado, dentro da Faculdade de Direito. “Um corpo que foi violado por estudantes brancos, da elite cafeeira, que estudavam naquela faculdade na época. Através de pesquisadoras negras, como a Suzane Jardim, é que se descobriu isso. Demonstra a importância de entrar na universidade para contar histórias que a história não conta”.

O professor Márcio Moretto fez um breve pronunciamento em nome da Diretoria da Associação de Docentes da USP, reafirmando a posição da entidade em defesa das cotas e da Comissão de Heteroidentificação. Moretto, que é 1º tesoureiro da Adusp, falou também sobre a permanência estudantil, tema que dialoga fortemente com a questão das cotas. “A Adusp luta pela dignidade do trabalho dos docentes da USP, e tem um espaço em que a gente se articula com os servidores técnico-administrativos e com os estudantes, que é o Fórum das Seis, para debater e reivindicar pautas comuns”, explicou.

“Há muito tempo o DCE não participa do Fórum das Seis. Então aproveito aqui esse ponto para dizer que é importante quem é do DCE se organizar para mandar [pautas], é um espaço muito importante para a disputa da permanência, não só, mas principalmente da permanência. Quem não é do DCE, que cobre do DCE, para a gente possa articular”, propôs o docente. “A articulação entre estudantes, funcionários e docentes da universidade tem um grande potencial para avanços, e em particular na questão da permanência estudantil a gente tem espaço para articular, para fazer essa reivindicação juntos”.

EXPRESSO ADUSP


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