Razoabilidade é um requisito estabelecido pela Constituição Federal para que uma norma seja considerada legal. “Antes fosse para valer”, diriam muitos, não sem razão, diante dos particularismos e vieses que não raramente determinam a aprovação desse ou daquele dispositivo legal.

Na universidade, entretanto, deveriam causar espécie normas desprovidas desse quesito: afinal, supõe-se que a racionalidade seja algo inerente à instituição. Se assim fosse, caberia perguntar: qual seria a impressão de um observador imaginário a quem fosse trazida a informação de que há, na USP, uma comissão supostamente acima de qualquer suspeita, que tudo pode, como se não estivesse sujeita às limitações inerentes à qualquer instância da administração pública?

Numa estrutura complexa, como a desta que é uma das maiores e mais destacadas universidades públicas do país, questões diretamente vinculadas à vida acadêmica dos docentes, de que se ocupam bancas de concurso, chefias e conselhos de departamento, congregações de unidades, pró-reitorias e conselhos centrais e o próprio Conselho Universitário, acabam entretanto, por serem decididas unilateralmente por uma comissão cuja constituição e agir escapam a qualquer dessas instâncias.

Estamos falando da Comissão Especial de Regimes de Trabalho (CERT), constituída por treze docentes escolhidos exclusivamente pelo reitor, a quem se atribui amplos poderes para decidir sobre questões nada triviais como a aprovação ou não de relatórios, de solicitações de mudanças de regime de trabalho e do período de experimentação dos docentes ingressantes na carreira. É a essa comissão que são conferidos poderes para que inste qualquer docente, em qualquer tempo, a apresentar relatórios com a finalidade de prestar contas de suas atividades.

Os membros da CERT exercem a prerrogativa de sugerir aos departamentos ou unidades a prorrogação do regime de experimentação ou a mudança de regime de trabalho. São também eles que estão autorizados a decidir em contrário ao entendimento de colegiados e de unidades e, assim, circunstancialmente, podem desqualificar ou determinar o fim de uma carreira acadêmica, por promissora que seja!

“Não pode ser! Numa universidade do porte e da relevância da USP? Duvido!” Esta seria a reação mais provável do nosso hipotético observador, ao ouvir tal narrativa. No entanto, ao tomar ciência do teor das resoluções 3.531/89 e 3.533/89 que instituem na USP, respectivamente, o Regimento Interno da CERT e o Regulamento dos Regimes de Trabalho (RRT) do Pessoal Docente, ao nosso amigo não restaria alternativa: ainda que perplexo, teria de reconhecer que na USP assim é!

Diz o Regimento Geral da USP, no seu Artigo 201: “A permanência em um determinado regime de trabalho não é definitiva, podendo o docente, a qualquer tempo, por decisão prévia do Conselho do Departamento, ouvido o CTA, com anuência da CERT, ser transferido de um regime de trabalho para outro”. É um dispositivo um tanto autoritário, porque embute a possibilidade de mudança de regime de trabalho à revelia do docente, com perda de vencimentos, não obstante a Constituição Federal consagre a irredutibilidade dos salários.

Mas o que dizer, então, do Artigo 8º do RRT, instituído pela Resolução 3.533/89: “Por proposta circunstanciada da unidade, aprovada pela CERT, ou por iniciativa desta, o docente em RDIDP poderá ser desligado do regime quando seu relatório de atividades for considerado insuficiente” (destaques nossos)?!?

A par de atentar contra o direito à irredutibilidade previsto na Constituição Federal, o Artigo 8º do RRT é incongruente, ao permitir que a CERT tome iniciativa à revelia de “proposta circunstanciada” que venha da unidade. E conflita com norma hierarquicamente superior: o Regimento Geral, que confia exclusivamente ao Conselho do Departamento a iniciativa em processos de mudança de regime de trabalho.

Se em seguida informássemos ao nosso amigo observador que a CERT, ao longo de sua história, efetivamente em muitos casos estendeu períodos de experimentação confrontando o entendimento das unidades, fez com que inúmeros docentes tivessem seu regime de trabalho compulsoriamente mudado — e ao deslocar-se um docente do RDIDP para o RTP são subtraídos 82,7% do seu salário! — e retomou essa prática a partir de 2014, não seria de estranhar que ele mergulhasse em catatonia profunda, já incapacitado de lidar com tanto surrealismo.

Caso resistisse ao susto, talvez ainda relutante se perguntasse: “Mas não se rebelam os docentes assim submetidos a tamanho arbítrio? E por outro lado, será que membros da categoria aceitariam incumbência tão avessa a qualquer respaldo ou compromisso com o que deve pautar uma atuação acadêmica responsável e ética?”

Ainda atônito, continuaria a interrogar-se: “E por que o fazem? São tão absurdas tais atribuições, que eles provavelmente não as exercem. Será que delegam as responsabilidades a apenas um entre eles, talvez ao presidente da CERT? Pois não é admissível, não é razoável que docentes da USP aceitem colocar-se em posição acima de bancas, departamentos e unidades, para decidir unilateralmente em contrário aos seus juízos e motivações”.

No entanto, posto diante da longa série de decisões arbitrárias da CERT, várias das quais tiveram como desfecho a saída definitiva da USP dos docentes perseguidos, nosso observador hipotético rende-se: “O quê? Então de fato agem dessa forma, como uma Inquisição em plena Universidade? E não ficam sob suspeição? Que razoabilidade há nisso tudo?”

Pois bem: dando descanso ao nosso tão desconcertado observador, talvez seja o caso de dedicarmos alguma atenção aos seus muitos questionamentos, sobre como e por quê assim se dá. E, ainda mais importante: como proceder para que assim não se dê! Assuntos cruciais, que serão objeto do próximo texto.

*Este é o primeiro artigo de uma série sobre a CERT. Continua na próxima edição!

Informativo nº 400

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