O edital da Capes para pesquisas sobre Famílias e Políticas Públicas no Brasil, que conta também com verba da Secretaria Nacional da Família (SNF) do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMDFH) “faz parte de uma ampla política conservadora em termos dos estudos sobre família, pois pretende promover a noção restrita de família (nuclear monogâmica heteronormativa e calcada em desigualdades de gênero e geração) que a ministra Damares Alves insiste em professar”, considera a professora Heloísa Buarque de Almeida, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH).
 
Na avaliação da docente, que integra a Rede Não Cala USP, o edital “ignora um amplo campo de estudos das ciências humanas no Brasil”, buscando focar em pesquisas que fomentem políticas públicas conservadoras. “O edital destaca que tem ‘o objetivo de sustentar as relações e os vínculos familiares, fortalecendo as famílias’, e é preciso lembrar que políticas que colocam foco na manutenção das unidades familiares se desdobram em desrespeito e ataque aos direitos das mulheres, crianças e idosos, e também da população LGBTI+, excluída da noção de família que a ministra professa”, diz Heloísa.
 
“Isso fica evidenciado se considerarmos que as verbas para políticas públicas desse ministério, especialmente aquelas voltadas à prevenção da violência doméstica, estão sendo altamente subutilizadas desde o início deste governo, e o MMDFH tem atuado até agora para desmontar ou enfraquecer as políticas existentes no campo dos direitos das mulheres. Cabe lembrar que a violência doméstica e intra-familiar é uma questão grave de saúde pública no país, mas não há esta ênfase no edital”.
 
A professora da FFLCH chama atenção para a nota a propósito do edital emitida pelo Fórum CHSSALLA, coletivo que agrega as associações científicas do campo das Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes. “Pesquisadoras e pesquisadores renomados nesse campo de estudo sequer foram consultados sobre o edital, ao contrário do que um edital cientificamente embasado deveria fazer. Muitas dessas pesquisas mostram que os arranjos familiares no Brasil foram e continuam sendo múltiplos e variados, e a realidade de situações vai bem além da noção restrita de ‘família’ professada nas políticas do atual governo. A proposta do Fórum CHSSALLA é que pesquisadoras e pesquisadores do campo das Humanidades reajam, demonstrando que há uma diversidade de pesquisa sobre ‘famílias’ no Brasil e um amplo campo consolidado que precisa ser considerado”.
 
Porém, a reação recomendada não é um boicote, mas ao contrário a participação, de modo a confrontar a lógica que vertebra o edital: “Em face desta tentativa de restringir a pesquisa sobre famílias a um determinado nicho, conclamamos colegas do campo das áreas das humanidades, que estão historicamente comprometidos com os estudos sobre famílias, relações de gênero e diversidades, a se apropriarem e pautarem reflexões e ações sobre o edital”, assinala a nota do CHSSALLA.
 
“Lembremos que a ação e transferência de recursos para pesquisa, proveniente de outros órgãos governamentais para as agências de fomento à pesquisa e pós-graduação, acontece historicamente em diversos governos”, prossegue. “Neste caso, no entanto, ao contrário do que é praxe, grupos e pesquisadores/as, sociedades científicas e organizações sociais com expertise no tema/campo do qual se tratará não foram consultadas para a construção e detalhamento do objeto do edital. Este, portanto, ignorou completamente boa parte das vozes de áreas e sociedades científicas que representam um acúmulo de estudos, pesquisas e reflexões sobre famílias e políticas públicas no Brasil, que trouxessem uma perspectiva outra e já bastante consolidada sobre as relações de gênero e diversidades das formações vinculares na história contemporânea do país”.
 
“É bastante evidente que o referido edital expõe determinados eixos que as propostas submetidas deverão encampar e versar, que revelam um conjunto de interesses explicitamente conservadores que apregoam uma compreensão específica e unificada da família, que mereceria ser questionada em uma perspectiva crítica das relações históricas da diversidade da formação familiar brasileira”, continua. “Exatamente por conta desta avaliação [é] que o Fórum CHSSALLA entende a importância de as Humanidades confrontarem esta lógica, apresentando trabalhos que possam, mesmo nos limites do edital, apontar para perspectivas mais amplas e que contemplem a diversidade do pensamento sobre as ‘famílias’ no Brasil”.
 

EXPRESSO ADUSP


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