Na “USP que não vai parar”, titulações de pós-graduação caíram 26% no primeiro ano da pandemia

“Esses números evidenciam uma tendência em curso no Brasil, que é a desistência da carreira científica”, diz Flávia Calé, presidenta da Associação Nacional dos Pós-Graduandos (ANPG). O baixo valor das bolsas, “congelado” desde 2013, a paralisação dos concursos públicos e a desvalorização da carreira docente agravam o problema. Na USP, APGs defendem criação de programa de permanência nos moldes do existente na graduação

Apesar do discurso adotado pela Reitoria no período da pandemia da Covid-19 (“a USP não vai parar”) e da ênfase oficial nas ações para que a(o)s estudantes de graduação e pós-graduação supostamente pudessem continuar suas atividades de forma remota, o fato é que, para muita(o)s aluna(o)s da universidade, não houve alternativa a não ser parar – fosse por falta de recursos técnicos e/ou econômicos, fosse pela junção desta a questões de saúde mental e outros fatores.
 
Os dados publicados pelo Anuário Estatístico de 2021 da universidade,  referentes ao ano de 2020, atestam essa realidade. Na graduação, o número de matrículas em disciplinas caiu de 280.761 no primeiro semestre de 2020 para 251.998 no segundo, diferença de 10,25%.
 
O total de trancamentos e de aluna(o)s não matriculada(o)s na graduação subiu de 4.150 no primeiro semestre para 4.981 no segundo. A título de comparação, esses números foram, respectivamente, de 3.528 e 3.683 em 2019. Considerando apenas o segundo semestre, houve um aumento de 26% em trancamentos e não matrículas de 2019 para 2020.
 
Na pós-graduação, os dados também apontam a diferença entre o discurso da Reitoria e a realidade — nesse caso, a situação é muito agravada pelas ações de um governo federal que protagoniza rotineiros ataques à ciência e asfixia financeiramente as agências de fomento e as universidades por meio de cortes orçamentários brutais.
 

 

De acordo com o Anuário Estatístico, o número de títulos de mestrado e doutorado outorgados pela USP caiu de 6.735 em 2019 para 4.967 em 2020, redução de 26,2%. Em relação a 2018, que teve 6.857 titulações, a queda é ainda maior: 27,6% (veja quadro).
 
“Esses números evidenciam uma tendência em curso no Brasil, que é a desistência da carreira científica”, avalia Flávia Calé, doutoranda na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e presidenta da Associação Nacional dos Pós-Graduandos (ANPG).
 
O desestímulo parte das próprias políticas de Estado, afirma Flávia, uma vez que apenas um terço dos estudantes recebe bolsa — e as bolsas federais estão sem reajuste desde 2013, acumulando uma perda de cerca de 60% de seu valor. Nas agências federais, a bolsa de mestrado é de R$ 1.500,00 e a de doutorado estacionou em R$ 2.200,00.
 
“Esses valores não conseguem manter a atividade de pesquisa e muito menos o caráter híbrido que tem a pós, ou seja, de um estudante em formação que é também um profissional da pesquisa”, prossegue. “As bolsas não estimulam esses jovens a enxergar na carreira científica a possibilidade de ter uma vida digna.”
 
Em termos de colocação no mercado de trabalho para esses profissionais altamente qualificados, Flávia aponta outros problemas, como a virtual paralisação dos concursos públicos, a desvalorização da carreira docente e o baixo investimento das empresas privadas em ciência, tecnologia e inovação (que se reflete na quase nula geração de empregos para mestres e doutores no setor privado).
 
Procurada pelo Informativo Adusp por meio de sua Assessoria de Imprensa para comentar a queda nas titulações da pós-graduação, a Reitoria da USP não se manifestou.

Pesquisa aponta necessidade de ações voltadas à saúde mental

Na avaliação de Merllin de Souza, doutoranda em Ciências da Reabilitação na Faculdade de Medicina da USP e integrante da diretoria da Associação da(o)s Pós-Graduanda(o)s da USP-Capital “Helenira Preta Rezende”, os números incluem desistências e adiamentos por conta das dificuldades geradas pela pandemia, como falta de equipamentos ou problemas para seguir com a pesquisa em modo remoto.
 
Como exemplo dessas dificuldades, Merllin cita casos de estudantes das chamadas “áreas de bancada” que precisam de acesso a laboratórios ou realizam trabalhos de campo, assim como aquela(e)s que, na área da educação, dependem de pesquisas focadas na relação presencial entre professora(e)s e aluna(o)s.
 
As APGs de São Paulo, Piracicaba, Ribeirão Preto e São Carlos formaram um grupo de trabalho para produzir um relatório sobre a situação da comunidade pós-graduanda frente à pandemia de Covid-19, divulgado em agosto deste ano. A partir de respostas de 834 estudantes, o relatório apontou preocupações com temas como as condições para dar continuidade às pesquisas, a manutenção financeira, a saúde mental e as condições de infraestrutura dos campi para o retorno presencial.
 
“Pós-graduandas(os) de todas as grandes áreas agrupadas consideram que, de alguma forma, a pandemia afetou a sua saúde mental. Dessa forma, pode-se considerar que existe uma necessidade de que a USP acompanhe e/ou construa estratégias eficazes de acolhimento e prevenção de agravos que envolvem a saúde mental, pois ainda não sabemos de fato sobre as sequelas que essa pandemia deixará em nossa comunidade”, diz o relatório.
 
A sobrecarga para alunas que são mães e para aquela(e)s que ficaram responsáveis por outra(o)s familiares também apareceu na pesquisa, como testemunhou uma aluna: “Além de todo o contexto da pandemia, como discente e mãe, sinto muitas vezes que não estou ‘dando conta das atividades’ e estou fatigada. Tento me desdobrar entre as atividades da pós-graduação e a atenção ao meu filho de três anos, visto que ficamos sozinhos em casa o dia todo, meu esposo só chega à noite. Além disso, tenho as atividades domésticas, atividades da escola do meu filho, o cuidado com meus pais que são do grupo de risco, e, apesar de não morarem comigo, faço supermercado para eles, farmácia, feira.”
 
Merllin, que participou da coordenação do relatório, considera que no período da pandemia o engajamento e a participação da(o)s colegas aumentaram e que a(o)s estudantes passaram a se comunicar melhor com seus pares e a se articular mais intensamente com a(o)s pós-graduanda(o)s dos vários campi.

Prorrogação das bolsas deve acompanhar extensão dos prazos

De acordo com a doutoranda, a(o)s estudantes perceberam uma “campanha muito forte para que as pessoas readaptassem seus projetos de pesquisa e conseguissem se titular”. Porém, mesmo havendo prorrogação de prazos na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e na própria USP, a extensão da vigência das bolsas permanece uma questão central para a manutenção da(o)s pós-graduanda(o)s.
 
Essa preocupação se renova com a perspectiva do retorno presencial, uma vez que muita(o)s aluna(o)s, espremida(o)s por problemas econômicos ou de outra natureza, voltaram para a cidade de origem ou a morar com familiares. “As pessoas vão conseguir voltar a São Paulo ou aos outros campi, se manter e concluir suas pesquisas? É uma incógnita”, diz a aluna.
 
A ANPG e um conjunto de APGs em todo o Brasil estão reivindicando aos órgãos federais que a extensão dos prazos seja acompanhada da prorrogação da vigência das bolsas para que a(o)s estudantes tenham a garantia da manutenção do auxílio para concluir suas pesquisas.
 
Na USP, as APGs estão articulando a criação de uma política para a pós-graduação nos moldes do Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (PAPFE), administrado pela Superintendência de Assistência Social (SAS) e voltado à graduação. A ideia é formatar um edital para a concessão de bolsas pela própria universidade.
 
De acordo com Flávia Calé, da ANPG, “é preciso tratar essas questões como problema de Estado”. “O Plano Nacional de Pós-Graduação, que deveria ser discutido desde 2019-2020, precisa enfrentar esses temas. O Brasil precisa discutir fortemente na próxima década a necessidade de valorização dos jovens pesquisadores como parte da estruturação da carreira científica”, defende.
 
Caso contrário, como aponta Merllin de Souza, continuaremos a conviver com uma “fuga de cérebros” cada vez maior. “A falta de perspectiva faz com que esses jovens cientistas não absorvidos aqui vão produzir em outros países a partir do que o Brasil ensinou”, lamenta.
 
 

EXPRESSO ADUSP


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