A sessão especial convocada pelo Senado para comemorar os 70 anos de criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), realizada em formato remoto na última sexta-feira (7/5), acabou tendo pouco de celebração e muito de cobrança e de críticas que os convidados – representantes da comunidade científica do país – fizeram sobre a falta de recursos para financiamento da pesquisa. Essa realidade está expressa, por exemplo, nos cortes feitos por Jair Bolsonaro (sem partido) ao orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), que teve vetados R$ 371,6 milhões na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2021, além de outros R$ 372,3 milhões “contingenciados”, ou seja, bloqueados.

“A minha fala é dedicada a pedir socorro para que a ciência não viva um apagão no Brasil”, disse Flávia Calé, presidenta da Associação Nacional dos Pós-Graduandos (ANPG) e aluna de mestrado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, última oradora da sessão, numa manifestação que ecoou muitas das preocupações manifestadas pelos demais participantes.

Flávia evocou “os pesquisadores e pesquisadoras brasileiros, em especial os jovens pesquisadores que buscam construir sua trajetória e que olham para o futuro e não veem perspectiva de emprego, que estão subempregados ou desempregados neste contexto de crise, que estão abandonando o sonho de ser cientistas, que é um sonho fundamentalmente de quem quer dar sua contribuição para desenvolver a nação brasileira em todas as dimensões e precisa ter uma vida digna assegurada para seguir nesse caminho”.

Lembrou que as bolsas, que constituem o salário de quem precisa se dedicar integralmente à pesquisa, não têm reajuste há quase uma década, e que a Chamada CNPq 16/2020 concedeu bolsas para apenas 13% dos mais de 3 mil projetos aprovados com mérito. “O Estado, num negacionismo econômico, está limitando o alcance da pesquisa científica no Brasil. O que deixaremos de descobrir e de fazer com a inviabilidade desses projetos que deixarão de ser financiados?”, perguntou Flávia.

“Em meio à maior crise de nossa história, não temos uma política forte de retenção e fixação de cérebros no país, e com isso engrossamos as fileiras da fuga de cérebros e da perda produtiva incomensurável. A fuga de cérebros é uma realidade, e não sabemos o tamanho desse problema”, afirmou.

A presidenta da ANPG defendeu que o país precisa cuidar dos talentos que formou nas duas últimas décadas, “que serão decisivos para reconstruir o Brasil após a superação da crise humanitária que vivemos”.

“Pedir socorro para a ciência implica necessariamente a defesa do CNPq e de um projeto nacional de desenvolvimento econômico e social para que o Brasil possa se realizar como uma grande nação de maneira autônoma. O contrário disso é defender que sejamos legados novamente à condição colonial em pleno século 21”, afirmou.

Flávia Calé ressaltou que não há outro tom para comemorar os 70 anos do CNPq que não seja o de indignação, ao qual se junta “a luta por mais investimento para que essa instituição consiga seguir mais 70 ou quantos anos forem necessários para desenvolver o nosso país e para cumprir a sua missão institucional”.

Em suas mídias sociais, a ANPG tem divulgado material da campanha #CNPQSemCortes para ser reproduzido e utilizado livremente.

“Chega de discurso: vamos passar ao recurso”, diz senador Izalci Lucas

O tom geral das manifestações foi dado logo na abertura pelo senador Izalci Lucas (PSDB-DF), que requereu a homenagem e presidiu a sessão. “Creio que estamos aqui para celebrar sim, mas também para dizer do potencial de nossos cientistas e estudiosos, cujos trabalhos são reconhecidos no mundo e completamente esquecidos ou deixados de lado em nosso país. O CNPq foi criado para que nossos pesquisadores e cientistas tivessem apoio”, afirmou, reiterando que os pesquisadores não podem ficar “de pires na mão”.

“Vocês que estão aqui sabem que nas últimas décadas o Brasil não seguiu os países desenvolvidos e sequer aqueles em desenvolvimento, como é o caso dos Brics, que avançaram e fizeram investimentos maciços, acreditaram na pesquisa, na ciência, na tecnologia e na inovação. Nós, apesar de termos grandes pesquisadores, estudiosos e inventores e de podermos estar nas melhores posições do mundo em termos de artigos e projetos, paramos por aí”, disse.

Presidente da Frente Parlamentar Mista da Ciência, Tecnologia, Pesquisa e Inovação, o senador lembrou que o Congresso já obteve alguns avanços no setor, embora ainda haja muito a fazer. “Neste ano, conseguimos depois de muita luta destravar os recursos para o setor e sobretudo não os perder caso passe de um ano para o outro”, apontou Lucas, citando a promulgação da Lei Complementar nº 177/2021, resultante de projeto de sua autoria.

A lei garante a aplicação sem “contingenciamentos” dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), mas a liberação foi barrada por uma manobra do governo Bolsonaro e depende da solução de imbróglios políticos e jurídicos. “O recurso tem que ser colocado, a lei exige isso”, afirmou Lucas. O senador tem reunião nesta terça (11/5) com o ministro da Economia, Paulo Guedes, para tratar do tema. “Não se faz ciência e educação com discurso. Chega de discurso: vamos passar ao recurso”, finalizou.

Orçamento é escolha política, defende Glaucius Oliva, ex-presidente do CNPq

Ex-presidente do CNPq e docente do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP, Glaucius Oliva lamentou a interrupção de pesquisas e projetos, que traz impactos de curto e médio prazo, mas também compromete o futuro ao desestimular os jovens talentos a permanecer no país. “Nós, da comunidade científica, temos que nos mobilizar para não deixar a ciência brasileira morrer”, disse.

Oliva citou relatos de colegas de comitês assessores que tinham apenas duas bolsas para conceder num universo de 102 projetos aprovados por mérito. O docente ressaltou que o CNPq não é apenas uma agência de bolsas, mas de fomento e que, sem a liberação integral dos recursos do FNDCT, a ciência e a pesquisa do país não vão sobreviver.

“Orçamento em qualquer lugar do mundo é uma opção política e que deve espelhar o valor que damos ao conhecimento. Todos os países do mundo enfrentam dificuldades financeiras neste momento, porém nenhum deles investe em ciência apenas porque está sobrando dinheiro. Ao contrário, investem porque entendem que é isso que vai alavancar o crescimento econômico e social”, afirmou.

Helena Nader, presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e docente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), lamentou a ideia de que no Brasil existam “leis que pegam e leis que não pegam”. “Espero que essa lei que o senhor lutou tanto para criar seja uma lei que pegue”, disse, referindo-se ao projeto sobre o FNDCT de autoria do senador Izalci Lucas. “Quero ver esses recursos chegando, mas além disso quero ver o CNPq com orçamento. Não se pode substituir o orçamento pelo FNDCT”, afirmou.

Ricardo Gazzinelli, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Fundação Oswaldo Cruz, defendeu que o financiamento da ciência e da pesquisa dever ser perene e tratado como política de Estado. “Não podemos flutuar de governo para governo”, enfatizou. Na sua avaliação, a pandemia da Covid-19 demonstrou claramente a dependência tecnológica do país, que precisa importar mesmo insumos simples para diagnóstico.
Gazzinelli afirmou ainda que, se o Brasil tivesse investido em sua própria infraestrutura uma porcentagem das dezenas de bilhões de reais gastos com transferência de tecnologia e compras de insumos, teria sido capaz de desenvolver suas próprias vacinas contra a doença. É preciso pensar no financiamento perene como forma de “estarmos preparados para a próxima pandemia”.

Também se manifestaram o matemático Artur Avila, pesquisador do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) e ganhador da Medalha Fields, Gianna Cardoso Sagazio, da Confederação Nacional da Indústria (CNI), e a senadora Zenaide Maia (PROS-RN).

Ministro e presidente da agência culpam crise e eximem governo da responsabilidade

A tentativa de sustentar o protocolo festivo ficou a cargo do ministro e ex-astronauta Marcos Pontes e do presidente do CNPq, Evaldo Vilela, que fizeram seus pronunciamentos antes das manifestações dos demais convidados. Ambos mencionaram as “dificuldades” orçamentárias do MCTI e da agência, mas atribuíram as suas causas genericamente à crise econômica do país, evitando colocá-las na conta das políticas e escolhas do governo.

Pontes citou “essa luta que todos nós temos pela estabilização do orçamento da ciência e tecnologia e do CNPq”, lamentou os valores baixos destinados neste ano e defendeu que é preciso “achar maneiras de complementar esse orçamento”, inclusive com recursos da iniciativa privada.

O ex-astronauta disse que trabalhou para garantir a continuidade das bolsas em andamento, único item do orçamento da pasta, ao lado da manutenção das unidades de pesquisa, “que a gente conseguiu blindar dos cortes”.

Pontes comemorou ainda a liberação de R$ 534 milhões do FNDCT, o equivalente a menos de 10% dos recursos disponíveis, “o que modifica o nosso cenário”. Para mostrar que “nem tudo é tão ruim”, o ministro deixou a cargo de Marcelo Morales, secretário de Pesquisa e Formação Científica do MCTI, anunciar “em primeira mão” que com as verbas já liberadas será possível garantir recursos para os institutos nacionais de ciência e tecnologia (INCTs) até 2022 e formular uma nova chamada para os institutos, também no próximo ano.

O ex-astronauta chamou ainda a atenção para a importância de proteger as organizações, trabalhando contra “riscos” e “ideias que não têm sentido”, como as propostas que já circularam no governo de fusão do CNPq com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Já o presidente do CNPq ressaltou que a agência precisa cada vez mais ser entendida pelo próprio parlamento como “instituição estratégica para o desenvolvimento do país”. “O CNPq passa por dificuldades no momento, como todas as instituições de maneira geral no Brasil, mas vamos vencer essas dificuldades”, disse. Em 30/4, numa reunião promovida pela SBPC, Vilela chamou de “tragédia” o orçamento da agência para 2021.

Lamentou que o país “passe por uma crise econômica muito grande” e que por isso “não tenhamos tido a oportunidade de fortalecer ainda mais a ciência brasileira”. Defendeu que é preciso não só celebrar os 70 anos do CNPq, mas “garantir a continuidade da existência e do vanguardismo” do órgão. Vilela lamentou ainda que a pandemia não permita a “conversa olho no olho com os empresários”, que precisam “entender o que fazemos e o fruto que podemos ter de mãos dadas”.

EXPRESSO ADUSP


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